IA – No meio da inteligência artificial generativa existe uma contradição intrigante. Há tempos percebe-se que, em relação aos seres humanos, os modelos de linguagem de grande escala são extremamente eficazes em realizar tarefas altamente complexas.
Há mais de dois anos, já havia indícios de que o ChatGPT (OpenAI) consegue ser aprovado sem dificuldade em avaliações rigorosas, como o temido LSAT (exame para ingressar em cursos de direito nos EUA) e em provas finais de MBAs das melhores universidades do mundo.
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Os sistemas mais modernos produzem textos sofisticados de maneira consistente, criando redações que educadores dificilmente diferenciam das elaboradas por mestrandos.
Apesar disso, até o momento não há dados concretos que indiquem uma transformação significativa no mercado de trabalho, mesmo em áreas consideradas de alto risco. O que explica essa aparente desconexão?
Dois novos estudos esclarecem o mistério entre a excelência técnica da IA e seu impacto limitado na substituição de profissionais, além de apontarem onde (e por que) as primeiras mudanças expressivas podem estar ocorrendo.
O primeiro, baseado em pesquisas anteriores da Brookings Institution e da OpenAI, é um estudo minucioso com dados de emprego dos EUA, cruzando tendências recentes de vagas com uma lista de cargos classificados como altamente suscetíveis à automação.
As atividades cotidianas de assistentes contábeis, analistas de seguros, consultores de viagem e auxiliares jurídicos coincidem quase totalmente com as habilidades da IA. Mesmo assim, o número de profissionais nessas áreas manteve-se estável, mesmo com a expansão das ferramentas generativas.
Contudo, há duas exceções relevantes. Redatores (especializados em texto, não em programação) e programadores apresentam indícios evidentes de transformação ligada aos modelos, com quedas abruptas no volume de contratações nos últimos dois anos.
E isso não reflete apenas oscilações econômicas gerais nesses setores. Em outras áreas das indústrias de tecnologia, editoração e marketing, não se observa declínio similar.
Assim, há um contraste claro entre profissões inicialmente avaliadas como igualmente vulneráveis. Essa conclusão dialoga com uma investigação recente da METR, empresa de pesquisa sediada em São Francisco, que propõe um novo modelo para compreender avanços, limitações e o ritmo de evolução da IA.
O estudo revela que a eficiência dos modelos linguísticos em uma tarefa específica não depende do grau de dificuldade intelectual para um humano, nem de expertise técnica, mas sim do tempo necessário para desenvolvê-la e do nível de desorganização ou imprevisibilidade envolvido no processo.
Portanto, funções como assistente executivo, consultor de viagens ou auxiliar contábil – todas baseadas em informática e que exigem competências básicas – ainda estão fora do alcance até das IAs mais modernas.
Esses sistemas enfrentam desafios para gerenciar múltiplas fontes de dados, adaptar-se a ambientes mutáveis, executar atividades paralelas ou lidar com objetivos ambíguos. Esses processos desorganizados são radicalmente distintos de testes de programação ou exercícios de redação.
Isso não significa que tais profissões permanecerão intocadas. A pesquisa da METR destaca que a IA avança de forma contínua em diversas frentes, independentemente da complexidade ou duração das tarefas. A conclusão é que assistentes administrativos podem ganhar apenas um breve respiro.
O que distingue programadores e redatores é que, nessas áreas, o ciclo completo de trabalho – não apenas etapas isoladas – está mais alinhado com as aptidões atuais da IA: tarefas ordenadas, lineares, sequenciais e bem delimitadas, semelhantes a questões de prova ou produção textual.
Uma perspectiva alternativa sugere que o “caos organizado” presente em certas profissões emerge justamente da dinâmica social e da variabilidade inerente ao contato humano. Existe um paradoxo curioso na percepção de que a obsessão por autogestão radical e eficiência operacional, tão celebrada no ecossistema tecnológico californiano, pode ter convertido carreiras digitais em posições mais suscetíveis – não mais resilientes – a rupturas sistêmicas.
O verdadeiro risco profissional contemporâneo reside nas funções que podem ser reduzidas a processos sequenciais deterministicamente replicáveis. Imagine, por exemplo, desenvolver algoritmos para processar datasets e posteriormente compactar conclusões em relatórios de formato rígido. O horizonte para profissionais engajados nesse padrão laboral se mostra vulnerável aos ventos da transformação tecnológica.
(Com informações de Financial Times)
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