Assalariados pagam em tributos diretos no Brasil proporcionalmente o dobro do que paga quem é patrão –tanto entre os mais ricos quanto entre os mais pobres.
Dados preliminares de um detalhamento da POF 2002/2003 (Pesquisa de Orçamentos Familiares, feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) revelam que, entre os 10% mais ricos da população (com renda per capita superior a R$ 957,96 por mês), os empregados têm seus rendimentos pessoais abocanhados em 16%, e os donos de empresas empregadoras, em 8%. Entre os 10% mais pobres (com renda mensal per capita de até R$ 40,89), os trabalhadores pagam 4%, e os patrões pagam 2%.
Elaborado por pesquisadores do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), o detalhamento mostra que 9,5% da renda total das pessoas físicas no país são gastos com tributos diretos como Imposto de Renda da pessoa física, IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) e contribuições previdenciárias.
O estudo considera sempre a tributação direta sobre as pessoas físicas, separando as famílias pela espécie de rendimento predominante e pelas faixas de renda per capita. No caso dos empregadores, não são computados os tributos pagos pela pessoa jurídica.
“No caso dos tributos diretos, fica evidente que o trabalhador assalariado paga muito. O detalhamento só reforça o que a gente já sabe: que os tributos no Brasil atuam de forma distorcida”, afirma Bernardo Campolina Diniz, pesquisador do Cebrap e um dos responsáveis pelo estudo.
A baixa progressividade da tributação direta é outro ponto relevante. Enquanto as famílias de menor renda no país direcionam cerca de 4% do que ganham para o pagamento desses tributos, as que têm os mais altos ganhos (os 10% mais ricos) contribuem com 12%. De um extremo a outro, a renda per capita média salta de R$ 23,80 ao mês para R$ 2.126,53.
No Brasil, embora já tenha se tornado rotina reclamar do peso de impostos como o IR, a fatia da renda disponível consumida pela tributação direta (9,5%) é bem menor do que a existente nos países desenvolvidos, onde o peso fica entre 30% e 45%. Aqui, no entanto, a carga da tributação indireta –aquela que é repassada ao cidadão no preço dos bens de consumo– é bem mais elevada.
“Sobretudo se considerarmos que a tributação indireta continua punindo mais as famílias dos estratos inferiores de renda [que gastam praticamente tudo o que recebem em bens de consumo], o grau de progressividade da tributação direta é insuficiente para contrabalançar isso”, argumenta Fernando Gaiger Silveira, pesquisador do Ipea, órgão ligado ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Segundo o pesquisador, países como a Suécia e a Dinamarca têm níveis de progressividade na tributação direta menores do que o brasileiro, mas o resultado final não é tão preocupante porque a menor desigualdade de renda e o maior peso dos tributos diretos na arrecadação total contribuem para corrigir essa distorção.
Quem paga menos
Para as famílias de maior rendimento médio do país (cerca de R$ 2.700 per capita), cujos recursos vêm predominantemente da venda de ativos e das aplicações de capital, a carga dos tributos diretos representa apenas 5%. Famílias de assalariados com renda per capita de R$ 309 e R$ 129 pagam, respectivamente, 8% e 6%.
“A grande injustiça é que, se a pessoa trabalha ou produz [como empresária], tem altíssima carga tributária. Já quem vive da especulação financeira, diretamente do seu capital, está em um paraíso fiscal”, afirma Gilberto Luiz do Amaral, presidente do IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário) e da Associação Brasileira de Defesa do Contribuinte.
Segundo ele, os dados obtidos com o detalhamento da POF também são apurados em vários países, mas, no Brasil, a comparação entre a tributação de assalariados e patrões precisa ser feita com mais cuidado. “A pessoa que vive do salário tem carga tributária direta alta, mas a que vive do investimento produtivo também tem uma carga muito forte na formação do lucro, antes de ele ser distribuído [aos sócios da empresa].” Para Amaral, seria errôneo concluir que o empresário paga pouco em tributos.
Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos), discorda dessa tese. “Esse retrato [o estudo] revela somente a ponta de um iceberg cuja problemática é muito maior. Muitas despesas pessoais do empresário são mascaradas como sendo da empresa para não aparecer como renda monetária.”
No Brasil, 49% da arrecadação vem de tributos indiretos, diz IBPT
Tributação maior recai sobre consumo e salário
DA REPORTAGEM LOCAL
No Brasil, 76% da arrecadação provém da tributação que recai sobre o consumo e os salários. São tributos que, em geral, têm maior peso no rendimento dos mais pobres do que no dos mais ricos.
A média nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que reúne as nações mais ricas do mundo) é de 50%. Os dados são de estudo inédito elaborado pelo IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário).
Dissecando ainda mais os números, a surpresa é maior: no país, 49% dos valores recolhidos estão nos bens e serviços e acabam sendo transferidos ao consumidor -são os chamados tributos indiretos. Na União Européia, essa porcentagem é de 30%; na OCDE, de 24%; e, no Japão, de 19%. Nos EUA, só 16% da arrecadação tem origem no consumo.
O peso dos tributos diretos, no entanto, é maior nos países desenvolvidos. No Brasil, apenas 3% do que é arrecadado vem de impostos sobre o patrimônio, como IPTU, IPVA e imposto sobre as heranças. Nos EUA, a mesma categoria representa 11%.
O restante da configuração da arrecadação brasileira é o seguinte: 27% provêm dos salários, 16% de tributos que incidem sobre o capital e outras rendas (categoria da qual fazem parte o IOF e a CPMF), 2% do comércio exterior e 3% de outros tributos.
Para os especialistas, a opção brasileira por retirar da tributação indireta a maior parte de sua arrecadação é, na verdade, uma escolha guiada pelo comodismo. (A Folha procurou a Receita na semana passada, mas ela não quis se pronunciar sobre a reportagem).
“No Brasil, há uma grande voracidade arrecadatória, batendo recordes a cada período. O governo arrecada onde é mais garantido e mais fácil e deixa em segundo plano a justiça tributária”, afirma Paulo de Barros Carvalho, professor titular de direito tributário da USP (Universidade de São Paulo) e da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
“O capital é difícil de tributar e, se for muito onerado, ele foge do país. O governo é pragmático e vai com toda a força onde é mais fácil pegar, que é o consumo e o salário. Onde não é possível arrecadar com tanta facilidade, o governo abre a mão, e é aí que está a injustiça”, aponta o advogado Sacha Calmon, professor de direito tributário da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
O comodismo explica também por que quem é dono de empresa paga, como pessoa física, menos tributos diretos do que quem é assalariado na mesma faixa de renda. “A remuneração do trabalho é altamente regulada. O recolhimento é feito pelas empresas, e elas são extremamente penalizadas se não fazem isso bem-feito”, lembra Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos).
A maior parte dos rendimentos tributados pelo IR, para quem é patrão ou trabalha por conta própria, por exemplo, são aqueles que aparecem nas declarações feitas pelos contribuintes. Para o assalariado, ao contrário, a regra é o imposto retido na fonte.
Luiz Antonio Caldeira Miretti, presidente da Comissão de Assuntos Tributários da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), ressalta que, no caso dos profissionais liberais que prestam serviços por conta própria, essa realidade muda se a maioria dos clientes é de pessoas jurídicas.
“Esses profissionais têm o imposto de renda retido na fonte, de acordo com a tabela, e ainda têm de pagar o ISS [Imposto Sobre Serviços] e a Previdência Social. Alguns acabam mais onerados do que o trabalhador com carteira assinada”, avalia o advogado.
Segundo os dados do detalhamento da POF 2002/2003, quem atua por conta própria paga, em média, 5,71% em tributos diretos, ante 7,72% dos donos de empresa e 11,6% dos assalariados. Quem vive de aluguéis contribui, em média, com 7,2% da renda.
Trabalho para o fisco
Segundo o IBPT, em 2005 o contribuinte brasileiro trabalhou até o dia 20 de maio apenas para pagar tributos (diretos e indiretos) -são quatro meses e 20 dias. Na década de 1970, o período comprometido pela tributação era de dois meses e 16 dias. O cálculo é feito com base nas regras para cobrança de impostos, taxas e contribuições exigidas nas esferas federal, estadual e municipal.
É consenso entre os estudiosos que modificar o sistema não é fácil e que isso exigiria investimentos para aparelhar a estrutura governamental de fiscalização.
Segundo Barros Carvalho, da USP, o trabalho é o mais sacrificado mesmo nos países desenvolvidos. “Essa má distribuição, se é que serve de consolo, não é uma proeza do povo brasileiro, é mais ou menos uma constante mundial. Nos países mais adiantados, há uma organização maior, mas, no fundo, a injustiça é a mesma, só está mais disfarçada.” Para ele, só uma forte mobilização social pode produzir mudanças. Como exemplo de amadurecimento da sociedade brasileira, o jurista cita o recuo do governo no caso da medida provisória 232, que aumentava os tributos para algumas categorias. “O governo quer sempre arrecadar mais. Só a sociedade pode forçar recuos.”
A sensação de que há pouca redistribuição também reforça a opção pela arrecadação indireta, que atinge alimentos básicos e remédios. “Somos de uma cultura em que o tributo não é visto como lastro para gerar bem-estar, mas simples encargo”, diz Fernando Gaiger, do Ipea. (BRUNO LIMA)
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