Em fevereiro, a Vivo anunciou a alteração no modo de cobrança da internet fixa – a partir de 2017, os planos serão definidos por pacotes de dados e o sistema de franquias será igual ao aplicado na rede móvel. Atualmente apenas a velocidade é pré-determinada, enquanto o consumo de dados é livre. Com a mudança, haverá um limite de dados em gigabytes, que, ao ser atingido, fará com que a conexão tenha velocidade reduzida ou até mesmo interrompida. Segundo dados divulgados em fevereiro pela consultoria Teleco, a restrição poderá afetar diretamente 25,5 milhões de brasileiros que acessam a internet por redes fixas.
O anúncio gerou revolta imediata dos usuários, uma vez que a medida implicará diretamente na vida de quem faz uso intensivo da rede. No novo modelo de negócio haverá a restrição de navegação e de downloads na web. Na prática, se o usuário possui um plano de 1 Mbps, terá acesso a apenas 10 GB de tráfego por mês, o que equivale, por exemplo, a quatro horas de vídeos em HD na Netflix. Rafael Zanatta, pesquisador de telecomunicações do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), assegura que não há consenso sobre a necessidade de pacotes de franquias de dados na banda larga fixa. "As empresas estão querendo lucrar criando uma situação de escassez artificial. Não existe argumento e justificativas técnicas para aplicarem os pacotes", afirma.
Não apenas o consumidor comum, que faz uso da rede para fins de lazer, seria afetado. Plataformas de EAD (educação a distância) utilizam arquivos de áudio e vídeo que apenas podem ser reproduzidos via streaming ou download, e ambos consomem uma quantidade exorbitante de dados. Por isso, usuários que utilizam programas como Duolingo, Khan Academy, Code Academy, WebSchool, entre outros, teria o acesso ao conhecimento comprometido. Para o profissional de tecnologia da informação, os prejuízos vão além: afeta também desenvolvedores que utilizam o acesso remoto como ferramenta fundamental para comunicação entre seus pares, além de inúmeros entraves que a limitação de downloads traria ao setor. Para André Silva, sócio do escritório Gonçalves e Bruno Sociedade de Advogados (GBSA), essa atitude vai contra o avanço tecnológico de pesquisa e desenvolvimento da área de tecnologia da informação. "Poderia atrapalhar a eficiência e o investimento tecnológico em comunicação ou em engenharia de rede. Interfere na evolução tecnológica de uma experiência que é saudável para a engenharia, para a tecnologia da informação, e também para consumidor", explica.
Limite de banda larga fixa não é novidade
Apesar de a Vivo ter sido alvo central de críticas, a operadora não é a primeira ou a única a apresentar a proposta. Contudo, conforme afirma o advogado especialista em Direito Público André Silva, até hoje a atitude não era de interromper, e sim de diminuir a velocidade. Mesmo assim, a diminuição não impedia que o usuário continuasse utilizando o serviço de internet. A América Móvilles, detentora da NET e da Claro, adota o modelo de negócio desde 2004. Nesse caso, as conexões não são interrompidas – ao atingir o limite de qualquer plano contratado, há a redução de velocidade para 2 Mbps. A medida só é aplicada em casos extremos, nos quais o usuário excede muito o limite contratado. A Oi também possui em contrato uma franquia de dados que restringe o consumo mensal, mas assegura que a redução não é aplicada atualmente graças a uma ação promocional que permite o acesso ilimitado à rede. A promoção, porém, pode ser suspensa a qualquer momento mediante a aviso prévio da operadora. A Tim posicionou-se contra a mudança e afirmou que não há previsão de alteração nos planos atuais. Maria Inês Dolci, coordenadora institucional da PROTESTE (Associação Brasileira de Defesa do Consumidor), observa uma prática abusiva por parte das empresas. "O que se tem percebido é que se trata de um novo negócio mais rentável que as operadoras querem introduzir, mas que traz um grande prejuízo ao consumidor. É um dano muito grande, porque você paga por um serviço que é caro e recebe pouco em termos de qualidade", critica Inês.
Medida contraria Marco Civil da Internet
A regulamentação da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) já previa a adoção de pacotes de franquia de dados por parte das operadoras. Entretanto a maneira como os pacotes serão ofertados e os impactos que a medida trará ainda estão em discussão. O Ministério das Comunicações enviou um ofício à Agência, que, pressionada, impôs às operadoras a obrigatoriedade de oferecer aos usuários ferramentas de medição de consumo e comparação de preços. As empresas deverão provar que se adaptaram à nova norma para que a Anatel publique um novo ato reconhecendo o cumprimento das medidas. Após 90 dias do ato publicado, as operadoras poderão colocar em vigor as restrições de internet fixa. Para Rafael Zanatta, do Idec, a medida cria a falsa ilusão de que o problema foi resolvido: "A Anatel está tentando legitimar o modelo de negócios sem fazer o papel que ela deveria ter feito, que é promover um amplo debate com a sociedade civil. Precisamos entender se há a necessidade de franquia de dados, e, caso haja, definir o que é uma franquia razoável", aponta. Nos Estados Unidos, os menores pacotes variam entre 150 e 400 GB, enquanto a menor franquia oferecida no Brasil é de 10 a 30 GB.
A adoção do novo modelo também fere os princípios do Marco Civil da Internet – que estabelece garantias, direitos e deveres do uso da rede e enxerga a internet como veículo de comunicação e meio essencial para exercício da cidadania. Além de prever que o acesso não pode ser suspenso (salvo por dívida do serviço), o documento reafirma o direito do usuário de que seja mantida a qualidade de conexão contratada. "A internet hoje é considerada um serviço essencial e, portanto, todo serviço essencial não pode ser cortado. Nesse aspecto nós entendemos que a medida é ilegal e que está violando não só o Marco Civil da Internet, mas também a própria Lei Geral de Telecomunicações, os contratos, e o Código de Defesa do Consumidor. As empresas estão ignorando várias leis existentes para poder implementar um novo modelo de negócios", condena Maria Inês, da PROTESTE.
Novo modelo encontra barreiras
Órgãos de defesa do consumidor já estão se movimentando. Além da PROTESTE, que criou uma petição em sua página online, o Idec ingressou com uma Ação Civil Pública contra as operadoras Claro, Net, Oi e Telefônica. "Diante da revolta e de vários movimentos sociais que surgiram contra a franquia de dados, da ausência de uma justificativa técnica e de estudos que demonstrassem a necessidade de implementar franquia de dados, o Idec entrou com uma Ação Civil na justiça", justifica Rafael Zanatta. O intuito é fazer com que o Judiciário reconheça que os novos contratos estão colocando a coletividade em situação econômica de desvantagem excessiva, situação que é proibida pelo Código de Defesa do Consumidor.
Manifestações da sociedade civil também têm ganhado força. A página do Movimento Internet sem Limites, criada no Facebook, já acumula mais de 400 mil curtidas. Já a petição criada por um usuário no site Avaaz.org conta com mais de 1 milhão e quatrocentos mil assinaturas. Para o advogado André Silva, o grande número de adeptos demonstra a legitimidade do movimento. "É possível, por meio de uma petição eletrônica ou conjunta, fazer um projeto de lei de iniciativa popular. Pelo fato da legislação já ser favorável, talvez esses movimentos sirvam como uma maneira de pressionar as próprias operadoras para ajustar a medida de uma forma que não seja unilateral, ferindo completamente o direito do usuário", diz o especialista em Direito Público.
Rafael Zanatta reafirma a necessidade de transformar indignação pública em força democrática. Para ele, é preciso pressionar as três frentes: o Judiciário, por meio de Ações Civis Públicas; o Legislativo, fazendo com que deputados e senadores realizem audiências públicas e passem a enxergar a internet como serviço essencial passível de um regime jurídico próprio; e, por fim, o Executivo – pressionando a Anatel a ouvir os consumidores e discutir a franquia de dados na internet fixa de maneira mais sofisticada. Para conduzir os consumidores às formas de movimentação, o Idec criou uma campanha intitulada Internet Livre.
Restrição representa retrocesso
Maria Inês, da PROTESTE, defende a ideia de que a ação das operadoras não apenas representa um retrocesso para internet brasileira, mas também contraria tudo o que existe em termos de leis, garantias e acesso a informação. "Antes de tudo, o consumidor é cidadão que precisa obter as informações, e é por meio da internet que elas vêm", afirma.
Além de ferir o Marco Civil da Internet, desestruturar a rede da maneira como conhecemos e trazer inúmeros prejuízos aos consumidores, a adoção do novo modelo pode aprofundar as desigualdades no Brasil, uma vez que só será possível possuir uma conexão de qualidade mediante o pagamento de pacotes extras. "O potencial é extremamente desastroso nesse sentido, já que não foi feita uma discussão ampla sobre o modo como pode impactar estruturalmente o acesso e ir contrariamente a uma política nacional de inclusão digital, que tem como objetivo reduzir as desigualdades sociais e promover a cidadania no Brasil", ressalta Rafael Zanatta.
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